05 - O HOLOCAUSTO NO TRIBUNAL

Cena do filme Negação, 2016. Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-negacao/.

Não, não me refiro ao julgamento de Adolf Eichmann, ou aos Julgamentos de Nuremberg. Neste artigo, comentaremos sobre o caso da negação do Holocausto e o processo que a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt enfrentou no tribunal.

A história desse processo judicial e a sua repercussão deram origem a diversos livros, quer acadêmicos, quer de memórias. Um desses livros memorialísticos, Denial (Negação) escrito pela própria Deborah Lipstadt, serviu de roteiro para o filme de mesmo nome.

O filme cinematográfico, intitulado Denial (Negação, em português do Brasil), foi lançado em 2017. A película tem Rachel Weisz, no papel de Deborah Lipstadt, Timothy Spall, no de David Irving (escritor negacionista do Holocausto, autoproclamado historiador), Tom Wilkinson, no de Richard Ramptom (advogado de Deborah Lipstadt) e Andrew Scott, no de Anthony Julius (consultor jurídico e estrategista da equipe de Lipstadt).

Neste artigo, discutiremos o filme Negação, que servirá de tema para abordar o chamado Negacionismo do Holocausto. Em seguida, analisaremos de que forma filmes, séries ou livros podem refletir o tempo e a época em que foram produzidos e lançados para o público, desta forma, influenciando o imaginário social.

1. O filme

No filme, a historiadora Deborah Lipstadt, estudiosa do fenômeno denominado negacionismo (ou negação) do Holocausto, e sua editora, a Penguin Books, sofrem um processo judicial por parte de David Irving, um escritor que se autointitulava historiador revisionista. O motivo? A autora teria se referido ao escritor como negacionista do Holocausto em um de seus livros, Denying the Holocaust: The Growing Assault On Truth And Memory (que poderia ser traduzido livremente como “Negando o Holocausto: um ataque à verdade e à memória”).

O fato é que Irving, nos anos anteriores ao processo judicial, reeditou o seu maior sucesso editorial, o livro Hitler’s War (A guerra de Hitler, em tradução livre). Nesta reedição, tomando como fonte a falsificação histórica do chamado Relatório Leuchter, documento esse que nega a existência das câmaras de gás em Auschwitz, passou a negar, não só a participação de Hitler no Holocausto, como a própria existência desse acontecimento histórico.

Com base nisto, Lipstadt denominou o escritor de negacionista do Holocausto. Irving, insatisfeito com a referência desfavorável a si e ao seu trabalho, adotou duas táticas. A primeira foi criar caos nas palestras de Deborah Lipstadt, nas quais esta autora, não só criticava o negacionismo como reafirmava a existência da Shoah (nome adotado por parte da comunidade judaica em referência ao extermínio judeu sob a máquina de destruição nazista).

A segunda, e aqui chegamos ao motivo que deu origem ao filme, foi a de processar a historiadora por calúnia e difamação. Contudo, o processo não é aberto nos Estados Unidos, mas na Inglaterra. Ali, de maneira diferente da que ocorre nos EUA, cabe ao réu provar a sua inocência, em vez de o autor do processo, no sentido de demonstrar o prejuízo a sua honra.

Essa característica do processo pode ser interessante para historiadores, pessoas que atuam no campo do Direito, cientistas sociais ou filósofos. Afinal, o funcionamento do sistema judicial inglês torna bem mais difícil aos acusados comprovarem a sua inocência.

Cartaz filme Denial (Negação).


O filme procura demonstrar que David Irving seria ideólogo da extrema-direita, uma vez que o autor – o qual se diz historiador revisionista – se utiliza de seus livros, artigos e conferências para relativizar ou negar completamente o Holocausto. Não raro, escritores, como ele, utilizam o termo revisionismo como uma brecha para promover discursos inaceitáveis na História e no campo das ciências em geral. Tudo sob um manto de apresentar uma outra “perspectiva” (ou uma “outra verdade”), como se fatos fossem mera questão de interpretação.

O resultado é que os “revisionistas” promovem projetos políticos que negam fatos e têm por tática intimidar, calar ou desacreditar as testemunhas, ou vítimas de um acontecimento histórico, a fim de tornar aceitável novos projetos autoritários.

No filme, Irving resolve encarar o processo sozinho, sem advogados, realizando no tribunal sua defesa legal própria. Caso os sobreviventes viessem a testemunhar no tribunal, estes poderiam ser inquiridos e reinquiridos pela acusação. E isso poderia prolongar o sofrimento vivido pelas testemunhas. Em virtude disto, a equipe legal de Lipstadt não deixa a ela ou aos sobreviventes falarem no tribunal.

Um dos problemas do filme, porém, é o fato de que Lipstadt foi apresentada como uma mulher excessivamente emotiva, fugindo à racionalidade, o que faz a película parecer uma mera história de advogados. O filme relata uma batalha judicial? Sim, relata. Mas é sobre isso, ou sobre a negação do Holocausto? Se a película é sobre advogados, por que o tema é Denial (ou, melhor dizendo, Negação)?

Por conseguinte, apesar das ressalvas, o filme é interessante porque traz à tona um caso real em que o Holocausto, enquanto evento histórico, teve a sua existência questionada. É sobre esse processo que falaremos brevemente a seguir.

2. O negacionismo do Holocausto

O negacionismo do Holocausto é uma ideologia e uma prática que se destina a relativizar e – em casos extremos – negar a existência desse evento histórico. Deste modo, quem promove essa fala tenta convencer outros da inexistência, ou, na melhor das hipóteses, pintar que a Shoah não teria sido tão ruim assim, ou que não teria a participação de Hitler nesse acontecimento.

Adaptando para terras tupiniquins, o negacionismo do Holocausto é o mesmo que dizer que o período de 1964 a 1985 não foi uma ditadura, que esta foi uma “ditabranda” (junção das palavras ditadura e branda), ou que não foi tão ruim assim. Mas isso já seria tema para uma outra conversa.

Para muitas pessoas, isso pode parecer surpreendente, afinal, temos pilhas e pilhas de livros, filmes e outros produtos culturais, dedicados a relatar a Shoah (nome adotado pela comunidade judaica para o acontecimento), criar histórias (baseadas em fatos reais ou totalmente ficcionais) ou analisar esse momento crítico da história humana. Infelizmente, no entanto, existem muitos que promovem essa ideologia que atenta contra a verdade histórica.

Diversos analistas entendem que o objetivo desse discurso é abrir caminho para um novo projeto de fascismo ou de nazismo. Assim, serve de munição argumentativa para movimentos de extrema-direita. Apesar da força que o negacionismo histórico tem sobre esse grupo político, cabe ressaltar que existem negacionismos da Shoah em diferentes grupos políticos, alguns destes de extrema-esquerda, grupos conservadores árabes e até vertentes do pensamento sionista judaico (sim, existe esse tipo de negação até entre judeus, por mais estranho que pareça).

3. O impacto dos filmes no imaginário social

Enquanto pensava esse texto, tive um insight acerca da possível relação entre o filme Negação e a eleição de Donald Trump em 2016. Segundo uma página que consultei, a película foi lançada cerca de um mês antes da eleição de Trump para o governo dos Estados Unidos.

Não que o filme tenha sido produzido por causa do risco Trump, porque o foi antes das eleições de 2016. Mas, se naquela época o filme foi impactante, tornando possível comparar com as eleições norte-americanas daquele ano, é porque a ideologia negacionista já vinha ganhando espaço e visibilidade no debate político e social norte-americano (e infelizmente, não só por lá).

Mesmo um filme ou livro que remete a algo que teria ocorrido no passado, ou que supostamente ocorrerá no futuro, se comunica com os medos, desejos e preocupações do presente. Tenho um conhecido que relacionou o filme Joker (2019) à emergência de uma convulsão social no mundo (e não é que houve a irrupção de intensas manifestações como consequência da morte de George Floyd?).

Não há produto cultural que não dialogue com o momento em que foi produzido. É essa característica que faz alguns desses produtos exercerem impacto no imaginário de uma sociedade.

No caso de filmes, isso tende a torná-los sucessos de bilheteria, de crítica, ou serem os mais assistidos dos serviços de streaming no momento. Já para livros, não raro isso se reflete em grande sucesso editorial, vendendo milhares, ou mesmo milhões de exemplares, sendo adaptados para outras mídias e assim por diante. E aqui pode caber um espaço para citar filmes como Don’t look up (Não olhe para cima), que teve grande amplificação no contexto da pandemia da Covid-19, embora inicialmente produzido pensando no desastre climático.

“Negação”, “Não olhe para cima” e outros filmes, séries ou livros que tratam desse assunto acabaram por disseminar grande crítica aos discursos negacionistas, podendo ser no campo da História, da ciência – mais especificamente a crise climática – ou tantos outros. Quaisquer dessas mídias de massa não só servem como entretenimento, como representam o espírito da época (zeitgeist, em alemão) em que foram produzidos e lançados para o público.

Enfim, o cinema, enquanto produtor de imaginários sociais, pode ser uma importante ferramenta na discussão dos problemas que permeiam a nossa sociedade.

4. Referências

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Por que há pessoas que negam o Holocausto? (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível na página https://www.cafehistoria.com.br/por-que-negam-o-holocausto/.

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. O Negacionismo do Holocausto (Artigo). In: Café História. Disponível na página https://www.cafehistoria.com.br/negacionismo-do-holocausto/.

Denial (Negação); Direção: Mick Jackson; Produção: Krasnoff Foster Entertainment & Participant Media; Estados Unidos / Grã-Bretanha: Sony Pictures & Shoebox Films, 2016. (109 min).

LIPSTADT, Deborah. Negação. 1ª ed. São Paulo: Universo dos Livros, 2017.

MÜLLER, Marcelo. Negação (Crítica do filme). Disponível na página https://www.papodecinema.com.br/filmes/negacao/.

RUY, Carolina Maria. O filme Negação mostra como o simpatizante do nazismo, David Irving, plantou sementes de retrocesso. Disponível na página https://radiopeaobrasil.com.br/o-filme-negacao-mostra-como-o-nazista-david-irving-plantou-sementes-de-retrocesso/.

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