06 - O nacional-socialismo na literatura e na psicologia: um breve estudo de caso
É um dado curioso o fato de que a literatura, as artes e a
filosofia, não raro parecem pressentir acontecimentos trágicos do futuro
próximo. Nesse sentido, o surgimento do nacional-socialismo, vulgo nazismo,
ocupa um lugar especial. Podemos perceber isso nas obras de vários escritores,
filósofos e até psicólogos. Aqui tentarei falar um pouco sobre “O lobo da
estepe”, de Hermann Hesse, e o ensaio “Wotan”, de Carl Gustav Jung. Esses dois
autores / pensadores conseguiram captar o chamado “espírito do tempo” (ou
zeitgeist, em alemão).
Antes de falar sobre as obras propriamente ditas desses
intelectuais, cabem algumas palavras de contextualização acerca dessas pessoas
e o meio em que viviam. O escritor Hermann Hesse nasceu na Alemanha e logo cedo
na vida se refugiou na Suíça. É perceptível em seus escritos, especialmente em
O lobo da estepe, que o autor defendia o pacifismo, ou seja, o autor era contra
a guerra, em especial, após acompanhar o desenrolar da I Guerra Mundial.
Carl Jung, por sua vez, era suíço de nascimento. O eminente
médico e psicólogo pertencia a uma linhagem de pastores luteranos. Para os padrões
da época sua família era pobre. Apesar disso, Jung conseguiu se formar em medicina.
Teve, também, um casamento com uma jovem mulher rica, Emma Jung, algo que
certamente lhe deu grande suporte enquanto este se estabelecia como médico.
Pois bem, após esses minúsculos apontamentos biográficos,
sigamos para os dois textos sobre os quais vamos comentar aqui.
Hermann Hesse e O lobo da estepe
O romance O lobo da estepe foi publicado em 1927. Nessa obra,
Hesse empreende uma busca de sua essência enquanto indivíduo. No livro, se
fazem presentes as figuras do duplo, tanto do personagem principal, como do próprio
autor. No entanto, observemos o que o autor menciona acerca do clima político e
social na República de Weimar:
Dois terços da gente do meu país leem esta espécie de jornal;
leem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados
permanentemente, incitados, açulados; semeiam-se neles o descontentamento e a
maldade, e a meta final de tudo isso é outra vez a guerra, a próxima guerra,
que já está chegando e que, sem dúvida alguma, será muito mais horrenda do que
a última.
Destas palavras, podemos depreender que o autor como que
pressentia a chegada de uma nova Guerra, ainda mais mortífera do que a I Guerra
Mundial. Para Hesse, tudo isso era tão claro e simples que “qualquer pessoa [podia]
compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado”.
Considerando o dado curioso de que o autor não menciona a
ascensão do Partido Nazista, sequer o nomeando em sua obra, depreende-se que —
e em harmonia com os dados históricos — havia diversos grupos
ultranacionalistas os quais propagavam o espírito revanchista em relação à
derrota na Guerra e disseminavam um antissemitismo cruel na Alemanha. Há no
romance, inclusive, a referência ao fato de que diversas pessoas de seu país consideravam
“odiosos os judeus e os comunistas”.
Qual era a atitude prevalecente acerca dos alemães os quais
se opunham ao militarismo do país? Em certa passagem da obra, um dos
personagens secundários mencionou que tais pessoas mereciam ser expostos à
execração pública.
Sim, Hermann Hesse, como a Cassandra da mitologia grega, conseguia
vislumbrar tanto o espírito militarista quanto o desenrolar dos acontecimentos
em seu país de origem. E aqui chegamos a Carl Jung, no famoso ensaio “Wotan”.
Carl Jung e “Wotan”
No ensaio “Wotan” — publicado pela primeira
vez em 1936 — o eminente psicólogo suíço analisa o desdobramento dos
acontecimentos recentes na Alemanha. Para o autor, Wotan (outro nome do deus
nórdico Odin), era, “com seu caráter abissal e inesgotável, uma explicação bem
mais acertada do nacional-socialismo do que todos os outros três fatores
reunidos” (os fatores econômicos, políticos e psicológicos).
Ao analisar psicologicamente “o espírito do povo alemão”
(por falta de palavra melhor), Jung descreve:
Talvez se possa designar esse fenômeno geral de “possessão”.
Esta expressão supõe, em primeiro lugar, um “possuidor” e um “possuído”. Desde
que não se queira deificar Hitler, o que aliás já ocorreu, resta-nos apenas
Wotan, o “possuidor” dos homens. (...) Wotan limita-se aos homens-feras,
empregados como guardas pessoais dos reis míticos.
Como percebemos aqui, para Jung, Wotan era o arquétipo que
emanava do inconsciente coletivo alemão. Nesse respeito, o ressurgimento desse
deus nórdico antigo, por muito tempo soterrado, representava o espírito de
guerra, caos e destruição. E assim se fez.
Para finalizar
Postula-se aqui que a tarefa que nos cumpre realizar: “Uma
hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar pela parte de
culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo...”.
Do contrário, “assim tudo continua como estava e a próxima
guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e
milhares de pessoas diligentes.”
Para saber mais, consulte as seguintes obras
HESSE, Hermann. O lobo
da estepe. 44ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
JUNG, Carl Gustav. “Wotan.” In: Aspectos do drama contemporâneo. 5ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
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