03 - O fim da História no Ensino Médio e a questão do doutrinador


Fonte: https://pxhere.com/pt/photo/840721. Acesso em: 25 de julho de 2021.

 
por Samir Calaça



O fim da obrigatoriedade do ensino de História no Ensino Médio. De que os criadores desse “novo Ensino Médio” têm tanto medo? Acreditam mesmo na fantasia do professor doutrinador, a là Sócrates, perversor da juventude? Bom, tanto no caso do filósofo grego, como no dos professores atuais, especialmente os da educação básica, esse tipo de acusação é plenamente falsa. Contudo, resta a pergunta: se o professor de História é doutrinador, existiria algum professor – de qualquer área e nível de ensino – que não o seria? Melhor: existiria alguém que não o seria? Antes de tentar responder essa pergunta, ou já respondendo, pensemos no que significa a palavra doutrinador.

A palavra doutrinador é a forma como a palavra doutrina (substantivo) e doutrinar (verbo) assumem quando recebe o sufixo encontrado em palavras como pensador, contador, matador e assim sucessivamente. Isso dá a ideia de algo como uma atividade realizada por alguém (ou por um grupo de pessoas). Retornemos, porém, uma casa. O que vem a ser doutrina?
Normalmente quando ouvimos essa palavra, tendemos a lembrar a expressão “doutrina da Igreja”, ou “doutrina do Direito” e suas variações. Isso pode nos dar pistas sobre o seu significado. De todo modo, vejamos o que alguns dicionários e sites dizem a respeito da palavra doutrina:

O minidicionário Aurélio diz o seguinte:

doutrina (lat. Doctrina) sf. 1. Conjunto de princípios que servem de base a um sistema filosófico, científico etd. 2. Catequese cristã. 3. Ensinamento.
sf. – substantivo feminino.

O site Significados.com.br dá a seguinte definição:

Doutrina é definida como um conjunto de princípios que servem de base a um sistema, que pode ser literário, filosófico, político e religioso. Doutrina também pode ser uma fonte do direito.
Doutrina está sempre relacionado à disciplina, a qualquer coisa que seja objeto de ensino, e pode ser propagada de várias maneiras, através de pregações, opinião de pessoas conhecidas, ensinamentos, textos de obras, e até mesmo através da catequese, como uma forma de doutrina da Igreja Católica.
Doutrina também está presente nas ciências jurídicas, onde também é chamada de direito científico, que são estudos desenvolvidos por juristas, com o objetivo de compreender os tópicos relativos ao Direito, como normas e institutos.

Segundo o site Direitonet, doutrina é:

Trata-se de um conjunto de princípios, ideias e ensinamentos de autores e juristas que, no caso, servem de base para o Direito e que influenciam e fundamentam as decisões judiciais. É fonte do Direito, utilizada também para a interpretação das leis, fixando as diretrizes gerais das normas jurídicas.

É, acho que por enquanto é suficiente, afinal, eu não sou dicionarista nem filólogo.

O que podemos depreender dos significados que esses dicionários e sites dão para essa palavra? Algo que parece ser comum a todas essas definições é que doutrina indica os princípios em que se baseia determinado sistema de pensamento humano, podendo ser de finalidade religiosa, política, educacional, jurídica e assim por diante. A palavra doutrinar (de doutrina) também evoca a ideia de divulgar – ou ensinar – as suas ideias sobre as coisas.

Agora voltemos ao termo doutrinador. Ao dizer que alguém é “doutrinador”, isso deveria dar a entender que alguém exerce a atividade de doutrinar. E para doutrinar, isso pode ser no campo político, jurídico, ou religioso, que provavelmente é a primeira acepção de doutrina que normalmente conhecemos. Logo, isso não deveria ser um problema em si, porque praticamente qualquer pessoa defende suas ideias e, em certo nível, as divulga. Partindo desse pressuposto, quase todas as pessoas são “doutrinadoras”. Contudo, no contexto político e social brasileiro, essa palavra (assim como comunista, esquerda ou outras) se tornou um xingamento. Por que isso, então? Pensemos um pouco.

A questão é que a frase “o problema é o professor de História doutrinador” escolhe como ponto de partida a opinião de que a ciência deve ser imparcial, apolítica, sem se manifestar sobre os temas da nossa sociedade. Isso remete – no caso da História – a algo que já falei nesse espaço: o positivismo e o historicismo. Sim, é evidente que as duas “escolas históricas” se referem a coisas diferentes entre si e não a sinônimos (como se costuma divulgar por aí). Ainda assim, são esses os paradigmas que os defensores do fim da disciplina de História no Ensino Médio, ou que, ao menos, desejam encurralá-la e controlá-la desejam.

Acho que tenho a dizer é que se o historicismo e o positivismo fossem tão bons assim para suprir as necessidades da sociedade atual, não teriam ocorrido inúmeras escolas e abordagens diferentes no ensino de História, e isso só restringindo ao século XX. Enquanto eu estudava na educação básica, eu ainda vi algo de historicismo / positivismo, embora eu tenha estudado nos idos das décadas de 1990 e princípios dos anos 2000. Claro, isso já não era lá muito forte, mas ainda existia. Se bobear ainda hoje há nas escolas.

Conheço pessoas que estudaram nos anos 1970 e 1980 e a maioria delas detestava a disciplina de História. Mas por quê? Porque tinham de ficar decorando datas e lugares no tempo (aqui já em dobradinha com a Geografia). Até existia a expressão “disciplinas decorativas”, mas não de design, é de decorar e guardar na memória mesmo. Sendo assim, o ensino de História (e Geografia) eram sofríveis, os alunos pouco ou nada entendiam a não ser as narrativas oficiais dos grandes acontecimentos e heróis da pátria. Logo, o ensino de Estudos Gerais tornava a educação inofensiva (e manipulada), sem qualquer desenvolvimento da capacidade de refletir sobre a sua realidade de sobrevivência e o mundo.

O fim da disciplina de História no Ensino Médio é um verdadeiro acinte ao conhecimento. E o pior é que os estudantes de escolas particulares e instituições de ensino de elite continuarão a ter essa disciplina, aumentando ainda mais o abismo de qualidade entre o ensino privado e o público, cada vez mais vilipendiado e sucateado.



REFERÊNCIAS


DIREITONET. Doutrina. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/924/Doutrina. Acesso em: 25 de julho de 2021.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. rev. atual. Curitiba: Positivo, 2010.

SIGNIFICADOS.COM.BR. Doutrina. Disponível em https://www.significados.com.br/doutrina/. Acesso em: 25 de julho de 2021.

 

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